A noite sob ameaça de extinção
O céu noturno, embora não pareça, tem muito em comum com os rios, as florestas e os
bancos de corais. Ele representa uma riqueza natural, de enorme importância para
decifrarmos os inumeráveis enigmas do Cosmo, mas está perigosamente ameaçado de extinção
pelo progresso. O principal perigo vem da poluição luminosa, ou seja, da luz das cidades.
Difundida na atmosfera, a luz criada pelo homem ofusca a luz dos astros mais fracos, a
ponto de já não haver praticamente nenhum lugar na Terra em que a noite seja completa.
Cada vez mais iluminado, o fundo do céu limita as observações possíveis aos astros mais
brilhantes; assim, cada vez mais, estreita-se o conjunto dos astros cujo brilho é
suficientemente alto para torná-los observáveis. A própria Via Láctea não pode mais ser
admirada na maioria das nossas cidades. Poucas de nossas crianças tiveram a oportunidade
de vê-la. Em resumo, e embora de maneira contraditória, o mesmo progresso que constrói
equipamentos astronômicos mais poderosos destrói a possibilidade de se enxergar mais longe.
Mas este tipo de progresso é realmente irreversível? Ou, de maneira mais objetiva,
quanto custaria despoluir o céu? A resposta, por incrível que pareça, é: nada.
Ao contrário das outras formas de resíduo, a eliminação das fontes de poluição luminosa
é economicamente lucrativa. O clarão que vemos sobre uma cidade, à noite, é uma simples
demonstração de desperdício. O motivo é que cerca de 30% da iluminação pública são
desperdiçados, pois a luz é jogada para todos os lados. Muitas fotografias de satélite
em órbita mostram como o fulgor das cidades é, literalmente, mandado para o espaço.
Isso sem falar no grande desperdício que é manter iluminadas as fachadas de edifícios
e os painéis publicitários durante as madrugadas, quando não há ninguém, ou há muito
poucos, para vê-los. Do lado das soluções, no entanto, seria fácil empregar "chapéus"
sobre as lâmpadas como meio de restringir o cone de luz na direção do solo - a única
que realmente importa.
Outra saída consiste em mudar a tecnologia das lâmpadas. Para a iluminação de vias
públicas, a lâmpada menos poluidora é a de sódio a baixa pressão, conhecida pela sua
cor amarela. A lâmpada de vapor de mercúrio é um completo desastre, pois emite luz em
faixas de freqüências em que o olho é pouco sensível - quer dizer, não ajuda muito a
visão das pessoas, mas atrapalha os telescópios. De quebra, a luz de sódio é a mais
econômica, já que gasta apenas 1 watt para gerar 125 unidades de iluminação, o lumen.
Isso é 6 vezes mais que as lâmpadas incandescentes comuns, que geram 20 lumens por watt,
e mais que o dobro das lâmpadas de mercúrio, que geram 54 lumens por unidade de potência.
Já há cidades despoluídas no mundo - como Tucson, de 600.000 habitantes, nos Estados
Unidos. Lá se pode admirar a Via Láctea graças a um programa de iluminação planejada
que contribui com apenas 6,5% para a luminosidade de fundo do céu. Em comparação,
Brasópolis, no sul de Minas Gerais, onde se situa o Laboratório Nacional de Astrofísica
(LNA),
tem o fundo do céu conturbado em cerca de 50% pela luz das cidades de Itajubá,
Campos do Jordão, a própria Brasópolis e outras. Têm sido inúteis as campanhas lançadas
pelo
LNA,
o maior observatório brasileiro: apesar delas, poucas comunidades vizinhas
adotaram uma política eficiente de iluminação pública. É preciso ainda mais firmeza
na luta para quebrar velhos hábitos de desperdício. As novas gerações também têm
direito a um céu limpo. Queremos de volta a escuridão do céu noturno.
Augusto Damineli Neto
Instituto Astronômico e Geofísico da USP
(Este artigo foi publicado em setembro de 1992 na seção Universo da revista
Superinteressante,
cujos editores gentilmente concederam permissão para divulgação
neste espaço)