Ao visitar o site de Davino Servídio, fiquei surpreso ao vê-lo apresentar o que ele diz ser uma prova de que a Terra não gira em torno do Sol. A idéia é bem simples e pode ser usada aqui como um ponto de partida para o entendimento dessa questão que tem se tornado polêmica na Internet. Portanto, leia este texto com atenção, para que você aprenda esse conceito interessante da Astronomia e possa fazer uma verificação prática do movimento de translação da Terra.
Davino diz certas coisas que à primeira vista parecem lógicas. É por isso que elas conseguem convencer tanta gente. Ele se baseia na suposição de que a Terra ficaria sempre situada entre o Sol e as Três Marias, estrelas alinhadas que pertencem à constelação de Órion. Essa posição fixa da Terra poderia ser comprovada. Vejamos os argumentos apresentados por ele e por outros que concordam com a mesma idéia:
1) As Três Marias são sempre vistas à noite, em todos os meses do ano.
2) Como a noite da Terra se opõe à direção do Sol, fica provado que as Três Marias estão sempre opostas ao Sol. Por isso, a Terra está sempre situada entre o Sol e aquelas estrelas.
3) Se a Terra girasse em torno do Sol, sua face escura ficaria voltada para regiões diferentes do Universo em épocas diferentes do ano, fazendo com que as Três Marias não ficassem sempre visíveis à noite.
Embora essas afirmações pareçam ser muito coerentes quando apresentadas em conjunto, existem erros sutis embutidos nelas e que não serão percebidos por quem não fizer uma análise mais apurada do problema, usando uma boa figura, nem tiver o hábito de observar o céu noturno com atenção e regularidade. Vamos analisar cada ítem com cuidado:
O item 1 omite uma informação importante. Embora as Três Marias possam de fato ser vistas em todos os meses do ano, elas não são vistas numa parte do mês de junho, porque o brilho solar clareia uma região do céu no início da noite e outra no fim da madrugada. É justamente dentro desse brilho, invisíveis, que as Três Marias ficam em alguns dias de junho, quando o Sol se coloca na região entre elas e a Terra. Daí, fica evidente que, em junho, a Terra não pode estar entre o Sol e as Três Marias. Na verdade, o que temos no meio do ano é uma situação totalmente oposta ao que Davino afirma, porque é o Sol que fica entre a Terra e as Três Marias.
Um outro detalhe em relação ao item 1 é que não basta somente que as Três Marias sejam sempre vistas à noite para se chegar à conclusão de que a Terra não gira em torno do Sol. O horário associado à posição em que elas são vistas também é importante. Para comprovar que a Terra está fixa entre o Sol e as Três Marias, é preciso que essas estrelas estejam sempre na parte mais alta do céu à meia-noite, cruzando o meridiano local. Na cidade de Macapá, que foi escolhida por Davino para testar sua teoria, essas estrelas passam todos os dias perto do Zênite, o ponto exatamente acima da cabeça do observador. Então, para que Davino estivesse certo, um morador de Macapá deveria ver as Três Marias perto do Zênite, à meia-noite, em todos os dias do ano. Como não é isso que acontece, Davino está mesmo enganado.
O item 2 contém um grande erro. É fato que a noite da Terra se opõe à direção do Sol, mas essa face escura corresponde a uma metade variável da superfície de nosso planeta; ela não corresponde a uma região geográfica fixa. Um observador que esteja na linha do Equador vai se deslocar por 180 graus durante uma única noite e verá quase todas as estelas. Somente a parte do céu ocupada pelo Sol será prejudicada. Assim, é perfeitamente normal que as Três Marias sejam vistas em algum horário noturno, durante quase todo o ano, porque elas só estarão ocultas dentro do brilho solar por poucos dias, no mês de junho.
O item 3 começa bem mas acaba mal. É verdade que a face noturna da Terra deve ficar voltada para regiões diferentes do Universo em épocas diferentes do ano, se o movimento de translação existir. Mas uma outra verdade é que ela fica, como é fácil perceber através de observações simples. O fato de as Três Marias serem vistas em (quase) todas as noites já foi explicado: a noite é longa e permite que um observador de Macapá veja uma grande parte do céu (quase todo), havendo boa chance de que as Três Marias estejam incluídas nela. Portanto, não é verdade que a luz do Sol deveria nos tirar a visão das Três Marias por seis meses (meio ano), como muita gente pensa.
Há um modo simples de comprovar a translação da Terra em torno do Sol. Basta escolher um horário noturno fixo e observar as estrelas (não precisa ser à meia-noite). Faça isso e note como o céu parece escorregar lentamente para o Oeste, noite após noite, no mesmo horário. Se a Terra tivesse somente rotação, o aspecto estrelado do céu deveria ser o mesmo em todas as noites, naquele horário fixo. Percebeu bem isso? Tome cuidado para não confundir com o movimento de rotação, que leva as estrelas para o Oeste em uma mesma noite, com o passar das horas.
Suponha que você faça observações regulares do céu somente no início da noite. O Sol estará sempre perto do Oeste, porque terá acabado de se pôr. Se você vir as Três Marias nascendo no Leste, é porque a Terra estará aproximadamente posicionada entre o Sol e essas estrelas, como Davino disse. Pense bem sobre o que deveria acontecer se a Terra não girasse em torno do Sol: você deveria ver as Três Marias nascendo sempre no Leste, no início da noite, em oposição ao Sol. Se você olhar na segunda quinzena de dezembro, é o que você verá, com toda a certeza. Mas será que isso vai acontecer também durante todo o resto do ano?
Imagine que durante suas observações sistemáticas você perceba que as Três Marias mudam de lugar. Imagine que em março, no início da noite, elas estejam altas no céu, cruzando o meridiano de sua cidade. Imagine também que em junho, no início da noite, elas sejam vistas no Oeste, perto de onde o Sol tiver acabado de se esconder. Qual seria sua conclusão óbvia?
Coisas como essa podem ser decididas facilmente por meio de uma verificação prática. É o que eu sugiro que você faça. Comece a partir de hoje e não permita que qualquer suspeita que você tenha sobre a translação da Terra cresça. Vá olhar e tire a dúvida. Se as Três Marias nascerem sempre no Leste no início da noite, Davino acertou. Se elas mudarem de posição numa média de 30º por mês, Davino errou.
Podemos também fazer aqui um estudo teórico, em consideração às inúmeras pessoas que têm dificuldade para aceitar a visibilidade das Três Marias na maior parte do ano. Para elas, se o movimento de translação for real, não será possível ver essas estrelas em datas separadas por seis meses, já que nessas duas situações a face noturna da Terra estará voltada para regiões contrárias do Universo. Supostamente, se alguém visse aquelas estrelas em março, por exemplo, não poderia vê-las em setembro. Será que isso está correto? Como se poderia ver as Três Marias, se depois de seis meses a translação faria com que a parte visível do céu fosse a oposta? A resposta é simples: mudando-se o horário de observação. Num mesmo horário, o céu visto seria o oposto, mas, em um horário diferente, estaríamos em uma posição diferente e poderíamos ver uma outra parte do céu, que naquele horário fixo não veríamos.
A figura abaixo mostra a Terra em doze posições durante o ano, uma por mês. É uma aproximação do caso real, para facilitar o estudo. O modelo foi reduzido a duas dimensões e teve eliminada a inclinação do eixo terrestre. Os raios de luz das Três Marias passam da parte de cima para a parte de baixo da figura e são todos paralelos, devido à enorme distância que as estrelas se encontram de nós. O centro de cada imagem da Terra corresponde ao Pólo Norte; sua circunferência externa corresponde ao Equador. A parte do Equador que recebe a luz das Três Marias está pintada de verde; a que não é atingida por ela está pintada de vermelho. A face diurna da Terra está pintada de azul claro; a notura está pintada de azul escuro. A rotação e a translação ocorrem, na figura, no sentido oposto ao dos ponteiros de um relógio.
Um fato importante a ser considerado aqui é que as Três Marias serão vistas, em algum horário noturno, se houver qualquer luz delas atingindo a face escura da Terra. Por isso, na figura, a região do Equador a partir da qual se pode avistar as Três Marias é aquela onde ocorre uma superposição da linha verde com a área azul escuro. Preste muita atenção no exemplo que vem a seguir, relativo a um observador do Equador. Estude a tabela abaixo para os casos de seu interesse, compare com a figura e com aquilo que o céu mostrar a você.
Junho (mês 6): Não há superposição da linha verde à área azul escuro. As Três Marias nascem às 6 horas, põem-se às 18 horas e não podem ser vistas à noite.
Julho (mês 7): A superposição da linha verde à área azul escuro aumenta para 30º. As Três Marias nascem às 4 horas, põem-se às 16 horas e são vistas por quase 2 horas.
Agosto (mês 8): A superposição da linha verde à área azul escuro aumenta para 60º. As Três Marias nascem às 2 horas, põem-se às 14 horas e são vistas por quase 4 horas.
Setembro (mês 9): A superposição da linha verde à área azul escuro aumenta para 90º. As Três Marias nascem à meia-noite, põem-se ao meio-dia e são vistas por quase 6 horas.
Outubro (mês 10): A superposição da linha verde à área azul escuro aumenta para 120º. As Três Marias nascem às 22 horas, põem-se às 10 horas e são vistas por quase 8 horas.
Novembro (mês 11): A superposição da linha verde à área azul escuro aumenta para 150º. As Três Marias nascem às 20 horas, põem-se às 8 horas e são vistas por quase 10 horas.
Dezembro (mês 12): A superposição da linha verde à área azul escuro aumenta para 180º. As Três Marias nascem às 18 horas, põem-se às 6 horas e são vistas por quase 12 horas.
Janeiro (mês 1): A superposição da linha verde à área azul escuro diminui para 150º. As Três Marias nascem às 16 horas, põem-se às 4 horas e são vistas por quase 10 horas.
Fevereiro (mês 2): A superposição da linha verde à área azul escuro diminui para 120º. As Três Marias nascem às 14 horas, põem-se às 2 horas e são vistas por quase 8 horas.
Março (mês 3): A superposição da linha verde à área azul escuro diminui para 90º. As Três Marias nascem ao meio-dia, põem-se à meia-noite e são vistas por quase 6 horas.
Abril (mês 4): A superposição da linha verde à área azul escuro diminui para 60º. As Três Marias nascem às 10 horas, põem-se às 22 horas e são vistas por quase 4 horas.
Maio (mês 5): A superposição da linha verde à área azul escuro diminui para 30º. As Três Marias nascem às 8 horas, põem-se às 20 horas e são vistas por quase 2 horas.
Com base no modelo aproximado da figura e na suposição de uniformidade do movimento de translação, podemos obter facilmente as fórmulas para fazer as previsões de visibilidade das Três Marias, válidas não somente para locais da linha do Equador:
C = 24 - 2 m N = C - 6 O = C + 6 T = | 2 m - 12 |
m = mês ; N = nascer ; C = culminação ; O = ocaso ; T = visibilidade
Veja como utilizar as fórmulas para os meses de março e setembro:
Março: m = 3
Culminação: C = 24 - 2 m ; C = 24 - 2 * 3 ; C = 24 - 6 ; C = 18
Nascer: N = C - 6 ; N = 18 - 6 ; N = 12 (meio-dia)
Ocaso: O = C + 6 ; O = 18 + 6 ; O = 24 (meia-noite)
Visibilidade: T = | 2 m - 12 | ; T = | 2 * 3 - 12 | ; T = | 6 - 12 | ; T = | -6 | ; T = 6
Setembro: m = 9
Culminação: C = 24 - 2 m ; C = 24 - 2 * 9 ; C = 24 - 18 ; C = 6
Nascer: N = C - 6 ; N = 6 - 6 ; N = 0 (meia-noite)
Ocaso: O = C + 6 ; O = 6 + 6 ; O = 12 (meio-dia)
Visibilidade: T = | 2 m - 12 | ; T = | 2 * 9 - 12 | ; T = | 18 - 12 | ; T = | 6 | ; T = 6
Compare os dados com a figura nestes dois casos, que foram citados anteriormente como exemplo. A razão de visibilidade das Três Marias torna-se, então, evidente, porque a linha verde se superpõe à área azul escuro por 90º. Assim, as Três Marias ficam visíveis por quase 6 horas, tanto em março quanto em setembro, mas em horários diferentes, o que esclarece de vez o "mistério".
Eu espero que você possa perceber a beleza e a simplicidade das fórmulas matemáticas que nasceram de um modelo aproximado e, principalmente, que você se surpreenda com a concordância entre os resultados teóricos e a realidade observada. Para isso, veja bem a diferença entre os dados gerados pelas fórmulas acima e o que foi encontrado graficamente com um simulador astronômico de alta precisão, num computador, para os horários reais de nascimento e ocaso da estrela Mintaka (uma das Três Marias), para o dia 20 de cada mês, na cidade de Macapá: UM ERRO MÁXIMO DE SOMENTE 5 MINUTOS DE TEMPO.
Percebeu corretamente o que foi feito? Partimos de um desenho e fizemos a suposição de que a Terra gira em torno do Sol. Anulamos a inclinação do eixo terrestre, trabalhamos com circunferências, consideramos os movimentos como tendo velocidades angulares constantes e a partir disso encontramos algumas fórmulas. Quando as usamos, os resultados obtidos diferiram da realidade observada por um valor numérico insignificante. Isto quer dizer que a realidade se comporta de acordo com nossa suposição e não pode ser muito diferente de nosso modelo simplificado.
Para finalizar nosso estudo, note, na figura, que a linha verde só não se superpõe à área azul escuro em algum dia de junho. Então, pergunta-se: não dá para perceber como é fácil ver diariamente as Três Marias, pelo menos, de julho de um ano até maio do ano seguinte? Isto não é muito mais do que 6 meses? Não é exatamente isto que você vê acontecer quando observa o céu noturno? Isto não está perfeitamente de acordo com o modelo que afirma que a Terra gira em torno do Sol? Viu como é fácil enganar-se ou ser enganado?
Se há mesmo alguma coisa catastroficamente errada com o modelo de Sistema Solar que utilizamos hoje, por que somente pessoas como Davino conseguem perceber? Por que nenhum astrônomo notou nada de estranho ao comparar os resultados de seus cálculos com o céu? A verdade é que o modelo atual fornece as posições dos astros com extrema precisão, enquanto Davino afirma coisas que não acontecem no mundo real, porque ele está muito confuso. Davino não se comunica eficazmente com as pessoas que poderiam tirar suas dúvidas. Ele apenas deixa sua opinião exposta na Web e depois desaparece. Ele não quer resolver seus problemas. Ele parece querer somente que muitas pessoas fiquem com os mesmos problemas que ele tem.
O movimento de translação da Terra existe de fato. Várias observações práticas o confirmam, enquanto a Física definitivamente o prova. Só mesmo quem não olha para o céu nem faz análises cuidadosas pode pensar o contrário. Portanto, não caia em conversa fiada. Pare, olhe, pense e pergunte, antes de sair logo acreditando em qualquer coisa estranha que encontrar na Web.